Entrevista com Silvio Ferraz e Sergio Kafejian

Realizada em 20/05/2010 por Leonardo Martinelli

De que forma surgiu a ideia para se criar a Camerata Aberta?

Silvio Ferraz: Creio que a música contemporânea está entrando em um momento diferente. Recentemente saiu um texto do jornalista João Marcos Coelho no qual ele diz que houve um afastamento não do público, mas sim dos intérpretes em relação à música contemporânea, sobretudo no pós II Guerra Mundial. Quando um intérprete está tocando, ele também toca para outro intérprete e então fica-se disputando quem está interpretando melhor um estudo de Chopin, por exemplo, e o público acompanha esse movimento. Com o aparecimento dos primeiros intérpretes de música contemporânea – e temos grandes intérpretes hoje em dia – o público começou a se apaixonar por essa nova sonoridade. Em minha opinião, o mundo mudou muito de som. Tanto que quando você ouve música barroca gravada hoje e música barroca gravada na década de sessenta é totalmente diferente. Se a diferença de interpretação é perceptível até na música barroca, imagine-a na música contemporânea. Ela passa a ser uma música de outra vitalidade, na qual o conceito de som está cada vez mais presente.

Sergio Kafejian: É interessante ouvir alguns comentários de pessoas que têm assistido os concertos da Camerata Aberta. Elas ficam surpreendidas com a beleza e vitalidade desta sonoridade, com a exuberância da escrita da música contemporânea.

Silvio Ferraz: A ideia da Camerata Aberta é apresentar a música contemporânea para o público por um bom caminho. Ou seja, por um repertório exuberante, cheio de vitalidade, com sonoridades suculentas, cativantes e no qual se pode notar a técnica e o virtuosismo dessa música. Já houve uma peneira da música do século XX, e nós já sabemos o que tocar de 1920 ou 1950, por exemplo. O público não sabe, mas existe muita chatice no século XVIII, muita música ruim dos amigos de Mozart, que não freqüenta mais as salas de concertos. Na música do século XX, sobretudo até a década de 1980, muito já foi peneirado. A rítmica intensa do minimalismo passa a ser vislumbrada num músico da década de 1950; a sonoridade super forte da música espectral ou na música eletroacústica da década de 1980 também passa a ser vista lá trás – você presta atenção e afirma: “Olha só como Webern também tinha isso!”. E o intérprete atento às coisas mais recentes faz aquilo com o gosto pós 1980.

Quais estão sendo os principais desafios do grupo, tanto em termos técnico-musicais como também na questão de gerenciamento de produção?

Sergio Kafejian: Queremos trazer para o Brasil aquilo que não é tocado e nem poderia a não ser com uma situação como a nossa, na qual o músico está dedicado integralmente a estudar esse repertório, pois ele tem uma estrutura para isto. Ao mesmo tempo tivemos a oportunidade de trazer como convidado o maestro Guillaume Bourgogne, um especialista nessa área, que ficou por aqui três meses. Ele nos ajudou muito a solucionar todas as dificuldades que foram aparecendo. É uma pessoa que sabe como montar, sabe o que é importante numa partitura deste tipo, sabe como tirar aquela sonoridade, como fazer aquilo acontecer musicalmente. Embora se pense que oito ensaios para um concerto é muito, na verdade é pouco, pois a cada programa são seis peças com uma dificuldade de interpretação enorme.

Silvio Ferraz: Dentre os desafios que temos na primeira etapa da formação de um grupo está a construção de sua sonoridade. Construir a sonoridade de um grupo de música barroca ou música clássica baseia-se em sonoridades já existentes. Mas e no caso de um grupo que toca músicas que estão sendo feitas agora, e que nem sabemos quais vão ser? É interessante porque às vezes o próprio grupo percebe que tem uma sonoridade sendo trabalhada ali e fala “não é bem essa a sonoridade que a gente gostaria de construir, gostaríamos de tentar por outro caminho, será que outro regente nos daria essa possibilidade?”. Então eles conversam e chegam a um acordo com o maestro. Quando você tem um regente que quer construir uma sonoridade, os músicos descobrem que eles têm uma sonoridade a ser construída e que têm propostas para essas sonoridades. Então os primeiros quatro meses do grupo foram de descobertas, de descobrir que podem tocar o repertório que estão tocando, que vão muito além do que imaginavam tecnicamente e que têm uma sonoridade já concebida na cabeça deles. Por tudo isto, creio que estamos em outro momento da prática de música contemporânea no Brasil, onde inclusive em breve nossos compositores vão começar a escrever a partir da audição desse grupo e a partir de seus referenciais técnicos e musicais.

Remetendo a nossa primeira pergunta, o que notamos é que a Camerata Aberta está atendendo a uma demanda reprimida que existia e que já está angariando um novo público.

Silvio Ferraz: Exatamente! Nós pretendemos começar a trabalhar com crianças, levá-las para ouvir ensaios-aula. Ao vermos algumas experiências no exterior com relação a isso percebemos que as crianças ficam apaixonadíssimas, sobretudo as menores que começaram a se alfabetizar e ainda não têm o pensamento linear da escrita. Elas têm um outro pensamento, estão muito mais ligadas a sonoridades, ao movimento dos músicos. Quando se monta um espetáculo temos que ter ciência de que um concerto de música contemporânea não pode durar duas horas e meia. Nem um espetáculo de música barroca pode durar isso, e nem de música romântica, pois é cansativo. E também não é aceitável em nenhum tipo de espetáculo que os músicos estejam desleixados, relaxados. Na música contemporânea, quando você tem um intérprete que gosta de tocar aquilo e que conta com um apoio de produção e logística para tal, ele toca com uma vitalidade corporal que apaixona até surdo. É isso que temos percebido nos músicos da Camerata Aberta.

Em muitos de seus concertos, a Camerata Aberta executou um repertório bastante diversificado, abrangendo desde a música renascentista e barroca, passando por “clássicos” da música moderna – com uma importante atuação na questão brasileira – e chegando a obras recém saídas do forno, de compositores brasileiros e de outros países. Qual é o cerne de montar um repertório tão heterogêneo?

Silvio Ferraz: A ideia é, em primeiro lugar, tirar a música contemporânea do nicho “música contemporânea”. A gente tem um grupo que toca música. Ponto. E esse grupo toca música da seguinte maneira: uma obra do repertório clássico, romântico, barroco ou renascentista; uma obra do repertório consolidado do século XX, ou seja, aquilo que ganhou nome próprio, como as Bagatelas de Webern (ou Pierrot Lunaire, de Schoenberg) e obras recentes do repertório nacional e internacional. Nosso objetivo é que a cada concerto tenhamos esse grande percurso, um grande diálogo musical amarrados em diferentes ciclos temáticos.

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