Entrevista com Guillaume Bourgogne
Posted by camerataaberta on Outubro 18, 2010 · Deixe um Comentário
Realizada em 11/05/2010 por Maurício Ayer e Juliano Abramovay
Você acompanhou o grupo nos primeiros concertos, sendo o primeiro regente convidado da Camerata Aberta. O que você pensa das possibilidades do grupo como formação instrumental?
O efetivo escolhido corresponde ao projeto do conjunto, pois é um ensemble de solistas: só há um instrumentista por naipe, com exceção dos pianos, percussão e violino. É uma formação modulável, o que é importante, pois tanto o século XX quanto a música contemporânea utilizam formações bastante diferenciadas de ensemble. Assim, a formação da Camerata Aberta permite que ela se aproprie de um repertório bastante diversificado. Então eu acredito que o efetivo escolhido foi muito bom.
Quando falamos da música contemporânea, ainda hoje se fala em música do século XX, e nós já estamos entrando na segunda década do século XXI. Você acha que nós ainda estamos no século XX? Existe de fato uma diferença, uma novidade no nosso tempo ou não, se trata de uma continuidade?
Acredito que ainda não temos o recuo suficiente para saber se já estamos ou não no século XXI. Em todo o caso, é claro um projeto como a Camerata prolonga o século XX musical. Onde vai de fato se iniciar o século XXI é difícil dizer, o século XX talvez tenha começado de fato apenas em 1913, com a Sagração da Primavera de Igor Stravinsky.
E lá não havia nenhuma dúvida.
Nós estamos em 2010, talvez seja daqui a três anos, talvez tenha sido em 2001, veremos. Não por razões musicais, mas por razões históricas. Eu não vou me arriscar de quando será!
[Sobre a Sinfonia de Câmara de Arnold Schoenberg, realizada pela Camerata Aberta no Festival Internacional de Campos do Jordão no dia 5 de julho de 2010, sob regência de Eduardo Leandro]. Esta peça lembra um pouco a Camerata, pois possui uma formação bastante próxima à do conjunto.
Com certeza: a Camerata Aberta tem todo interesse em ser um instrumento de criação, de inovação, de vanguarda, um instrumento artístico de ponta. Mas ela deve também estar cravada em uma história musical, ela deve tocar e se apropriar de todo o repertório que antecedeu o período contemporâneo. Então voltar a Schoenberg é o mínimo, temos que voltar ainda mais. E é o que começamos a fazer com Debussy e com Bach [a Camerata Aberta interpretou A Arte da fuga e Prelúdio para o entardecer de um Fauno, dos respectivos compositores]. É muito importante se situar em uma lógica de continuidade na história da música, mais do em uma lógica de ruptura. Nós temos a consciência de que na música atual, não há ruptura como na música de Schoenberg, ou mesmo como Varése. Atualmente estamos em uma prolongação do que começou no século XX, voltando um pouco à questão anterior. De toda forma, devemos nos apropriar, cultivar o jardim histórico da música tocando essas obras primas do século XX, peças incontornáveis.
E por que elas são incontornáveis?
Particularmente, a Sinfonia de Câmara é importante pois começa a forçar os limites da tonalidade, a entrar no atonalismo. Mesmo que ela seja totalmente tonal, em mi maior, prepara a destruição da tonalidade através de um “empilhamento de cartas” que é emblemático dessa peça e que anula as polarizações de uma tonalidade. A continuação natural desse processo foi o dodecafonismo, pois se continuarmos empilhando essas cartas chegamos aos 12 semitons com a mesma importância, sem polaridade. Essa é a técnica que Schoenberg utiliza como forma de se emancipar da tonalidade. Ele já a havia desenvolvido antes, com a Noite Transfigurada e outras obras, mas a Sinfonia de Câmara é realmente um projeto de vanguarda, muito imaginativa, criativa, sem nenhum corte de movimentos. É uma sinfonia de câmara afirmada como tal, que utiliza os instrumentos como solistas, mas que se aproxima bastante de uma sinfonia. Não é uma pequena sinfonia, como a de Charles Gounod, que é formada por pequenos temas. É uma verdadeira sinfonia, porém de câmara.
Talvez ela tenha alguma relação com o Concerto para Orquestra de Bela Bártok, que também vê os instrumentos da orquestra como solistas.
Bártok não inovou tanto com o Concerto para Orquestra, na minha opinião. É uma obra do fim de sua vida, e instrumentos de orquestra como solistas já existe em Mahler, mesmo antes. O Concerto para Orquestra de Bartók é um concerto no sentido de que existem os tutti e os solistas, mas não é realmente música de câmara. A Sinfonia de Câmara de Schoenberg é de fato música de câmara. Por exemplo: Jeux, de Claude Debussy, é mais música de câmara, na minha opinião. Para mim, o Concerto para Orquestra não é a obra mais interessante ou inovadora de Bartók, mesmo que eu a admire bastante. Ela é bem leve, apesar de ser mais escura no primeiro movimento.
Esta idéia de ter uma sinfonia de câmara, mesmo um concerto para orquestra, com uma recombinação maior entre as seções e instrumentistas da orquestra vai de acordo com o tipo de orquestração que a música do século XX pede.
O século XX se encaminha para uma individualização maior da música. Nele, é o solista que é valorizado, não concertante, mas o solo mesmo. Por isso a formação da Camerata Aberta, ela ocupa a música de câmara e música solista, este aspecto é importante. A individualização da performance instrumental é algo que está de acordo com a evolução da sociedade ocidental do século XX e que é muito importante na criação musical.
É uma individualização, mas também é uma possibilidade de recombinação.
Sim, de repensar o efetivo da orquestra e do ensemble. A individualização nos obriga a repensar a relação entre os instrumentistas, os instrumentos e grupos instrumentais, e isso abre possibilidades. Temos inclusive obras orquestrais que tem essa formação camerística embutida, mas a formação sinfônica não é a mais emblemática do século XX, e sim do ideal romântico do século XIX. Todos os ensembles de música contemporânea vão de 16 a no máximo 30 integrantes.